Catarina Cristão
"Durante dez anos da minha vida, entre os 20 e os 30, tinha sempre o meu stock de chocolates atrás da porta do quarto. Só assim me sentia protegida. Tinha de saber que os tinha lá e que não precisava de sair de casa para os comprar e comer." A comida sempre dominou a vida de Margarida, agora com48 anos. Chegou a pesar 120 quilos, pelo comportamento obsessivo que desenvolveu em relação a bolos. tartes e doces. Costumava comprá-los durante a hora do trabalho e ficar o resto do dia a pensar no momento em que os iria consumir, à noite em casa, às escondidas e longe dos olhares reprovadores dos outros.
Margarida é uma adicta da comida, uma doença que pode ser tão destrutiva como a dependência do álcool ou das drogas. "É uma prisão. Não se pode viver com ela nem sem ela. Quando estava triste, comia exageradamente; quando estava contente, também, porque achava que merecia, como se fosse um prémio", lembra. Na pior fase, perto dos 30 anos, as depressões sucessivas levaram-na a tomar antidepressivos e a tentar suicidar-se por diversas vezes.
"Os adictos da comida ou overeating sofrem de um mecanismo obsessivo e compulsivo que os leva a comer exageradamente, sobretudo alimentos calóricos porque são os que rapidamente dão sensação de compensação, explica João Pedro Augusto, psicólogo da Centro de Recuperação Villa Ramadas, que estima que esta doença represente 8% dos distúrbios alimentares e que haja centenas de milhares de doentes em todo o mundo. "A tendência será para o número ir crescendo, como acontece nos outros distúrbios,"
Para este especialista em adição, o factor mais importante não é a comida, mas o que está por trás do comportamento. "São doentes que sofrem de graves problemas psicológicos e emocionais. O overeating não é o problema. É o sintoma do problema", refere.
Já Isabel do Carmo, endocrinologista do Hospital de Santa Maria, define adições específicas: "Existem dependências de certos alimentos, como o chocolate ou doces. Ao serem ingeridos, fazem que o cérebro liberte substâncias químicas, como a serotonina e a dopamina, responsáveis pelo bem-estar. Um processo semelhante ao que acontece com o tabaco e as drogas. Resulta numa espécie de tratamento antidepressivo."
"Os alimentos identificados como tendo propriedades aditivas incluem os doces, os glícidos ou hidratos de carbono, as gorduras, as combinações gordura/doces e possivelmente alimentos muito ricos em sal", refere ainda o endocrinologista David Carvalho.
Sobreviver apenas
Já em criança Margarida tinha problemas de auto-estima. "Era a mais gordinha de três irmãs, isolava-me e sentia-me menos do que os outros", lembra. A primeira vez que tentou fazer uma dieta tinha oito anos e, à medida que os anos passaram, o problema a comida foi-se instalando. "Sem dar por isso. Ia-me refugiando nos alimentos. Precisava deles para estar protegida" Porém, a adição trouxe-lhe ainda mais instabilidade Denise está em psíquica: "À noite comia, no mínimo, uma tablete de chocolate para me sentir bem, mas no fim, a tristeza, revolta e remorsos apoderavam-se de mim. Acordar no dia seguinte para ir trabalhar era um sofrimento horroroso. Eu não vivia, eu sobrevivia."
A adição à comida também acompanha Denise, 35 aos, desde criança. "Nunca tinha entendido a vontade voraz de comer como doença ou adição", confessa.
''A grande dificuldade é a aceitação da doença. As pessoas entram em negação. Pensam 'é só hoje'. Mas entra-se num padrão de comportamento", alerta o psicólogo João Augusto, referindo que as desculpas são sempre as mesmas: "Comem porque estão desempregadas. Porque correu mal o dia, porque estão deprimidos. E só termina quando já está maldisposto."
As dietas rápidas e sucessivas faziam parte da vida de Denise, "mas falhavam sempre". Sentia-se muito mal com o seu aspecto físico: "Deixei de conviver com os meus amigos e não conseguia interagir com os meus colegas do trabalho. Isolava-me do mundo."
Denise está em tratamento desde há um ano. Frequenta as reuniões dos Adictos da Comida Anónimos e ganhou auto-estima. Desde então não voltou a comer alimentos que pudessem causar adição. “Há 15 anos que não toco em chocolate”, garante também Margarida, que também está a fazer recuperação nas reuniões em Lisboa.
REUNIÕES
Às sessões de Adictos da Comida Anónimos chegam vários casos de pessoas com problemas alimentares
Acontecem todas as segundas-feiras, na Igreja das Fumas, Lisboa, há 18 anos. Nas reuniões de Adictos da Comida Anónimos chegaram a juntar-se 20 pessoas. Agora não são mais do que oito. "As pessoas que lá vão sofrem também de outros distúrbios alimentares, como a bulimia. Há outros que tratam a dependência das drogas ou do álcool e depois começam a comer compulsivamente. As vivências podem ser todas diferentes, mas a base é igual: sofrimento horroroso, falta de auto-estima e tristeza", descreve Margarida, Coordenadora do grupo há 15 anos e também ela adicta da comida.
"Algumas pessoas já nascem com uma predisposição para pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos.
Destes, muitos entram em processos de autodestruição e raramente apresentam apenas uma adição. São os chamados poli consumidores", explica o psicólogo João Pedro Augusto, especialista em adição.
Joana, de27 anos, frequenta as reuniões em Lisboa há três anos. Começou por ser apenas adicta da comida, mas rapidamente evoluiu também para bulimia. "Sempre que me dava um ataque de fome comia compulsivamente e só alimentos que sabia que me faziam mal. Depois ficava com sentimentos de culpa que me levariam, um tempo depois. a vomitar para compensar o que tinha ingerido", conta.
"Um adicto da comida começa a engordar rapidamente. Normalmente são mulheres e pela pressão social do culto da imagem encontram no vómito ou nos laxantes ou diuréticos uma técnica para evitar o ganho de peso. É uma solução instintiva",indica João Augusto.
A Joana viveu a doença intensamente durante dez anos. "Começou a ser de uma forma esporádica. Depois tornou-se um comportamento diário. O que comia vomitava. Se tomasse seis refeições, vomitava seis vezes", revela. 'agora estou a ser acompanhada nas reuniões e a fazer o tratamento dos 12 passos. Aprendi a reconhecer os alimentos que devo ingerir e a evitar as situações que podem espoletar a vontade súbita de comer excessivamente e depois vomitar, como jantares com amigos."
''A terapêutica tanto para os adictos como para os que evoluíram para uma bulimia passa pela psicoterapia e não pela variante medicamentosa. Têm de aprender a gostar delas próprias e a serem positivas. As dinâmicas de grupo são fundamentais", assegura João Augusto. Além de Lisboa, há apenas mais um local no País onde se realizam reuniões dos Adictos da Comida: na Igreja Matriz de Matosinhos, às quintas-feiras, pelas 19.00.