Catarina Gomes, Público
O álcool no início da adolescência pode funcionar como uma porta de entrada num mundo onde depois passam à cannabis e a drogas ilegais. Alguns entram e desde muito cedo não conseguem sair. Na comunidade terapêutica onde estão internados Miguel, 16 anos, e Martim, de 18 anos, distinguem-se por serem os mais jovens rostos num meio onde ouvem histórias de velhas dependências. Eles pensavam que eram diferentes dos “carochos”.
Na cabeça de alguns adolescentes existe um aclara linha divisória entre dois mundos: existem eles, miúdos que se embebedam ocasionalmente, alguns fumam uns charros e outras drogas ditas leves para se divertirem, e há os outros, os “carochos”, os que consomem drogas como heroína, que se vêem por aí na rua, têm mau aspecto, têm doenças e fazem de tudo para acabar com a ressaca, desde roubar a prostituírem-se. Eles, adolescentes, não têm, nada a ver com os carochos. Ou, pelo menos, era assim que Miguel e Martim pensavam antes de ali estarem.
Miguel, uma cara morena de miúdo com barba mal crescida, dois brincos de argolas metálicas na orelha esquerda, um visual à Cristiano Ronaldo. Na comunidade terapêutica privada VillaRamadas, perto de Alcobaça, partilha quarto com dois homens, um de 36 e outro de 40 anos, com percursos típicos dos tais carochos. “Eu não gostava deles, é um mundo mais pesado”.
Na comunidade terapêutica hoje é dia de dizer adeus a um dos que dantes trataria por carocho, Diogo, um utente que passados nove meses de internamento está prestes a sair, repetindo um ritual que consta em contar a todo o grupo a sua historia de vida, para depois receber aplausos e palavras de motivação para regressar forte “ao mundo lá fora”. Diogo começou a beber aos 14 anos, fumou o primeiro charro aos 15, aos 17, corriam os anos 1990, experimentou a heroína, hoje tem 37 anos. “Roubei restaurantes cafés, escolas, tudo” e faz uma das muitas interrupções no seu discurso nervoso para chorar. “Agredia o meu pai e a minha mãe, comecei a traficar, levei porrada da polícia, fui cinco a seis vezes a tribunal”.
Numa sala organizada em círculo, todos os utentes ouvem a história de Diogo, aquiescendo aqui e ali, sorrindo, às vezes lacrimejando, alguns em reconhecimento por terem histórias idênticas. A maioria dos utentes ali sentados está na casa dos 30, 40, 50 anos. Há duas excepções, dois rostos que se distinguem pela juventude, o mais novo, Miguel e Martim, que fez os 18 anos já na comunidade.
Terminado o relato de Diogo, chega a hora dos que ainda ficam internados incentivarem aquele que sai. Miguel esteve a cabecear de sono durante parte do relato e como só entrou há dois meses pouco o conhece, apenas tem para dizer ao veterano ”já me ajudaste muito2. Já Martim partilhou seis dos nove meses de Diogo ali internado e é dos primeiros que se põem de pé a bater palmas, mal acaba a “partilha”.
“És uma pessoa espectacular, és um gajo cinco estrelas, és lindo, chora filho, que faz bem”, diz, paternal, dirigindo-se ao colega com mais 20 anos do que ele, para continuar dizendo “a vida aonde tu andaste já tu conheces bem”.
Para Miguel e Martim, tudo começou em tempo de férias.
A história de Miguel começou com um Orgasmo, lembra-se bem do nome do primeiro shot (pequena bebida com alto teor alcoólico que se bebe de um só golo) que provou numas férias em Sesimbra, onde os pais tinham uma tenda montada no parque de campismo desta cidade balnear no distrito de Setúbal, teria ele uns 12 anos. Lembra-se bem que o pediram porque tinha um nome giro e, como era à “base de licores”, era doce. Nessas férias ainda provou o TGV-A, que misturava num gole vodka, absinto, tequilla e gin, mas o mais forte deles todos foi mesmo o Ovo Estrelado, assim chamado porque era servido num pires onde ao centro havia uma groselha e à volta absinto para sugar com uma palhinha.
Os outros cinco amigos tinham 15 e 16 anos e Miguel nunca quis ficar atrás, ainda mais porque havia raparigas a assistir. “ É normal na juventude ir beber uns copos, desde que se tenha controlo”, diz com um tom de maturidade que não condiz com o rosto imberbe. No Verão seguinte, ele e os amigos já se abasteciam de garrafas em supermercados, e à bebida começou a juntar cannabis, que se tornou diária já em tempo de aulas, na escola. Nas aulas começava-me a rir e mandavam-me para a rua.”
Na escola, numa localidade de subúrbio do concelho de Loures, passaram a proibir a saída dos alunos fora dos portões para ir fumar. “Começávamos a consumir na escola, o pátio, se víssemos uma auxiliar, apagávamos.” Foi nestes tempos que os gostos de consumo se inverteram, e se é verdade que o álcool tinha funcionado como porta de entrada, agora começou a ser usado como acompanhante da cannabis e do haxixe (resina de cannabis). “As drogas leves batem mais com álcool” e como o dinheiro do almoço ia sobretudo para drogas, o álcool comprado tinha de ser mais barato. Para disfarçar o sabor do vinho, misturava-o com Sumol de ananás e Coca-Cola. “ Os jovens não gostam do sabor do vinho”, esclarece.
Para disfarçar a vermelhidão dos olhos depois de consumir cannabis, antes de chegar a casa, comprava “umas gotas que limpam os olhos” e que são usadas por quem usa lentes de contacto. Quando a mãe – o pai só chega do armazém onde trabalha às dez da noite – comentava nos seus regressos a casa “estás muito calado, estás a arrastar muito as palavras, estás estranho”, ele dizia “ não me apetece falar, ia para o computador, isolava-me. Uma pessoa à frente dos pais consegue comportar-se, mesmo charrado.”
Houve uma vez em que foi apanhado com charros na rua por uns polícias, mas limitaram-se a tirar-lhe a droga, atirá-la para o chão e esmagá-la e os pais nunca souberam do incidente. Durante mais de um ano, eles não se aperceberam de nada, até começarem a desaparecer coisas de casa, como os objectos de ouro que roubava e depois vendia, com a mediação de um amigo de 18 anos, numa daquelas lojas que compram e vendem ouro que cresceram como cogumelos nos últimos anos.
Os pais empenharam-se para o ter internado nesta comunidade terapêutica privada, a 2350 euros por mês por um período que anda pelos seis meses mas que pode ser mais longo. Martim espera que se fique pelos seis meses, se assim for, faltam-lhe sete dias para sair, não é tanto pelo dinheiro que os pais estão a gastar, mas porque está farto.
De um subúrbio do concelho de Loures à vila de Cascais, Miguel e Martim provavelmente nunca se teriam conhecido se não tivessem, afinal, tido percursos que se tocaram. “ A primeira bebedeira a sério “ de Martim, que passou grande parte da sua vida lectiva em colégios privados, foi também em férias, aos 14 anos, no ambiente resguardado da piscina do hotel algarvio onde passava férias com a mãe. Como estava ali, entre muros, com os primos, a mãe não se preocupava em deixá-lo vir para o quarto mais tarde, sentia que ele ali estava em segurança.
Em conjunto, ele e os primos beberam uma garrafa de whisky acompanhado com Coca-Cola e de mais não se lembra, até despertar, na sua cama do quarto de hotel coberta de toalhas que a mãe usou para empapar o vomitado de toda uma noite. Ela estava a dormir no chão, ao lado, depois de ter passado toda a noite em claro. A mãe disse-lhe algo do tipo “não acho muito normal. Ficou um bocado chateada, mas não fez um grande filme à volta daquilo. “ o pai, divorciado da mãe desde o seus cinco anos, soube da façanha pelo telefone e riu-se.
Essa primeira experiencia com o álcool nas férias do Algarve não o marcou pela positiva, conta Martim, numa das muitas vezes na conversa em que penteia o cabelo louro com os dedos. Até pôs o whisky de lado.
De resto, os pais – a mãe trabalha na indústria farmacêutica e o pai é director bancário – mantiveram o padrão, “não saia à noite, os meus pais sempre me tentaram controlar muito, nas férias davam mais abébias”. No café ao pé de casa foi bebendo umas cervejas e, por volta dos 16 anos, começou a sair à noite e experimentou o seu primeiro charro, oferecido por um colega antes do treino de futebol. “ Não senti nada, até pensei que era falsificado e que estavam a gozar comigo”.
As experiências seguintes com cannabis foram diferentes e “a sensação de estar longe, de esquecer os meus problemas” foi tão boa que passou a usar os charros sempre que, na sua cabeça, se agigantavam o que eram os grandes problemas da sua vida: “ Pais divorciados, saltar de escola em escola, de casa em casa.” Foi à noite que começou a ter contacto com drogas mais pesadas,“ Speed, LSD, MD” (meta-anfetamina). Tal como Miguel, também começou a roubar os pais e também os tios, e ia vender as jóias às tais lojas que compram ouro, também usando como intermediário um amigo já maior de idade.
O pai já sabia dos charros, 2 achava normal fumar um charro ou outro”. Foi aliás por ele ser “mais liberal” que decidiu deixar de viver com a mãe e mudar-se para casa dele. Mas quando o pai percebeu que já nem sequer ia às aulas e estava completamente dependente de drogas e álcool para funcionar mudou de atitude. Depois de uma noite que passou fora de casa tinha à chegada uma comitiva “ de caras sérias”, entre pai, mãe, padrasto, duas tias e um tio. Já lá vão quase seis meses.
Na comunidade terapêutica, passou um estranho aniversário dos 18 anos, “ sem a grande festa sem os amigos”, feito entre desconhecidos que, no início, era rápido rotular, como uma rapariga para quem bastou olhar uma vez para pensar “esta é depressiva. Fiquei de boca aberta quando percebi que tinha o mesmo problema que eu”, só que “ela acabou a viver na rua”. Martim só ficou uma semana em casa de um amigo. “São pessoas que foram mais longe que eu”. Se tudo correr bem, ela está prestes a sentar-se ali, na cadeira onde hoje está Diogo sentado a contar a sua história de 20 anos de dependência. A de Martim tem uns dois anos. Ele sabe que não está curado, mas que ali ganhou “algumas ferramentas” para resistir e ganhou um objectivo de vida: quer tentar ir para a Força Aérea e ser piloto, como o avô.