Quando o stress se transforma em raiva
SAÚDE. QUANDO O STRESSE SE TRANSFORMA EM RAIVA
A raiva descontrolada pode tornar-se uma doença que destrói relações eleva ao consumo de drogas ilegais. Há pessoas que batem nos pais, outras que mordem o cão. Há uma terapia que ensina a gerir esta emoção.
SUSANA LÚCIO
Laura estava prestes a rebentar. A amiga estava a irritá-la e não parava de falar. "Não digas isso. Está calada!". pediu-lhe várias vezes. Mas o rumo da conversa manteve-se e Laura estourou. Agarrou no braço dela e deu-lhe uma dentada."Pronto, já está!", disse, aliviada. Não foi a primeira vez que Laura mordeu os amigos. Bastava estar maldisposta com o que quer que fosse para reagir de forma agressiva. "Cheguei a morder no meu cão!"
Há quatro anos, a raiva tomou conta dela. Laura deixou de trabalhar, foi-lhe diagnosticada uma depressão e um esgotamento nervoso e começou a engolir mais de 10 comprimidos por dia.Com medo que ela se suicidasse, o psiquiatra pediu-lhe que fosse à sua consulta todos os dias. Mas o sentimento não desapareceu.
"A base da raiva é a frustração e esta pode ser profissional, familiar, social ou sexual. São necessidades não cumpridas que provocam um desequilíbrio emocional", explica o psicoterapeuta Eduardo da Silva, director clínico do centro de tratamentos Villa Ramadas, onde se faz uma terapia para gerir a raiva. Quando não é exprimida de forma correcta, a emoção afecta o corpo e a mente e pode destruir as relações familiares e profissionais. "A raiva pode ser activa, quando é exteriorizada de forma agressiva com murros ou gritos, ou passiva, quando se manifesta pela autopiedade e pelo choro”, explica Eduardo da Silva. O psicoterapeuta considera mesmo que a raiva é viciante como as drogas. Talvez pior, porque está dentro de cada um.
APESAR DO IMPACTO que provoca, a incapacidade de controlar a raiva não é considerada uma desordem mental e não está listada no Manual de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais da Associação de Psiquiatria Norte-Americana, elaborado em 1994.Mas há especialistas, como o psicólogo norte-americano Raymond DiGiuseppe, que defendem que esta seja incluída no próximo manual, a ser editado em 2012.
Mas a raiva pode ter um efeito muito positivo, se for bem canalizada. Um estudo da Harvard Medical School concluiu que as pessoas que revelam interesse pelo que estão a fazer evitam explodir à mínima contrariedade. "Os atletas sentem raiva, mas canalizam-na para se superarem e conseguirem melhores desempenhos”, explica a psicóloga Isabel Pedro.
Não foi o caso de Laura. Com 30 anos, trabalhava como responsável de um supermercado de Cascais e partilhava a casa com uma amiga. “Gritava muito, sozinha no carro, com a minha família e até com o meu chefe. Se achava que eles não tinham razão, gritava", conta.
Lembra-se de que tinha medo de perder o controlo. "Ficava tudo enevoado e só via o alvo a abater." O alvo podia ser uma amiga ou a loiça de casa. "Entrava na cozinha, abria o armário e partia todos os pratos, um a um." Era a forma de descarregar a fúria que sentia porque a amiga não tinha arrumado a casa como prometido ou porque fizera um comentário de que Laura não gostara. "Ia engolindo sem dizer nada para não magoar. Quando estava a rebentar tinha de descarregar e fazia-o partindo tudo." Depois, aliviada, limpava o chão e comprava um serviço de pratos novo.
Para evitar pensar na raiva que sentia, Laura trabalhava sem parar - aos fins-de-semana, feriados, o que fosse preciso para se distrair. Mas um dia isso não chegou. Sentiu-se mal e quando foi ao centro médico já não a deixaram sair. Tinha a tensão demasiado baixa. Foi de urgência para o hospital e passou lá a noite a soro.
Os médicos diagnosticaram-lhe uma depressão e um esgotamento nervoso. Ficou de baixa médica e começou a tomar medicação. Tinha um saco para os comprimidos e uma lista para saber quais tomava de manhã, ao almoço e ao jantar. "Na altura, dormia duas horas e fumava quatro maços de cigarros por dia. Costumava desarrumar a casa toda e depois limpava-a, só para ter 9 que fazer."
IA TODOS OS DIAS à consulta de psiquiatria e falava sobre a sua vida durante uma hora. "Mas não disse o que me perturbava. Nunca fui habituada a falar dos problemas, mas a engoli-los para que desaparecessem", diz. Ao fim de um mês o especialista quis interna-la. Laura recusou-se.
Nessa altura, conheceu um amigo que a aconselhou a internar-se num centro de recuperação para viciados. Voltou a recusar. Ela não era alcoólica nem toxicodependente. Mas o amigo, que hoje é o actual companheiro, convenceu-a. Ele já tinha passado por um centro de recuperação e conseguiu, pela primeira vez, que Laura falasse sobre tudo aquilo que nunca antes falara, como a morte do pai. "Parecia uma panela de pressão a explodir. Chorei, solucei, sentia o peito quase a rebentar. Foi um alívio", conta.
Internou-se na Villa Ramadas, em Alcobaça, centro de tratamento especialista em dependências, para aprender a controlar a raiva. Mas para isso tinha de falar sobre si em terapias de grupo que incluíam viciados em cocaína, heroína, álcool, sexo e, também, raiva. Durante um mês não falou. "Os meus colegas pensavam que eu era muda."
Um dia os psicólogos do centro pediram-lhe para fazer uma partilha – contar a sua vida a todos os companheiros do centro."Foi muito difícil. Mas não escondi nada. Falei durante uma hora. Até eu fiquei surpreendida." Ao fim de quatro meses de terapia de grupo, Laura saiu do centro. Deixou Cascais e foi viver com o namorado para Pombal. "Agora sei identificar quando estou a chegar à zona de perigo. Paro e ligo a alguém para desabafar. Consigo descarregar a raiva acumulada sem morder ninguém."
A RAIVA NUNCA desaparece. É um sentimento que cresce e pode tomar conta da vida de alguém se não for domado. Algumas pessoas tentam controlá-la através de substâncias químicas. Paul, de 21 anos, usava haxixe. Desde os 13 anos que fumava canábis para acalmar. "Estava zangado com o mundo", recorda. Os problemas começaram na escola, na Suíça, de onde é natural. Pequeno e franzino, gozavam com ele porque gaguejava. "Chegava a casa e dava pontapés nas portas e nas paredes e partia tudo no quarto." O irmão mais velho não ajudava. Dizia-lhe que ele era adoptado e que nunca iria conseguir fazer nada na vida. Em Outubro do ano passado, os pais internaram-no naquele centro de tratamento em Portugal.
Mas Paul não ficou muito tempo. "Fugi sem levar água ou comida." Caminhou durante 11 dias até que, exausto, se deitou numa estrada. Teve sorte: um automóvel parou e ligou para o hospital. Dois dias depois, voltou à Suíça e ao haxixe. "Mas é muito cansativo estar sempre zangado."
Regressou por vontade própria e permaneceu na Villa Ramadas durante sete meses e uma semana. "Estou mais calmo. Os meus pais dizem que pareço outro." As terapias de grupo foram as mais complicadas, porque só fala francês e um pouco de inglês. Mas conseguia dar a entender aos outros quem o tinha magoado e quem ele magoara.
Paul recebeu alta em Julho e voltou para junto dos pais. Mas regressou em Agosto para rever os amigos. "Aqui criam-se laços muito fortes", diz o director clínico, Eduardo da Silva. Esta semana, Paul inicia as aulas na Universidade de Genebra.
ANA ESTA NA FASE FINAL da estadia no mesmo centro. Quando chegou, tentou isolar-se. Fechava-se no quarto e só saía quando as duas companheiras entravam. Almoçava sozinha depois de o grupo ter comido e não falava com ninguém. "Ia falar sobre o quê?"
Só quando contou a história da sua vida é que percebeu sobre o que tinha de falar. Aos 22 anos de idade, Ana é mãe solteira, viciou-se em haxixe e perdeu a conta às pessoas que já espancou. A primeira briga aconteceu aos 12 anos na escola. As crianças gozavam com ela por ser gorda e não usar roupas de marca. "Atacava quem me provocava com socos, cadeiras, o que conseguisse levantar", diz.
A mãe foi informada pela escola, mas, por mais que tentasse falar com a filha, Ana não ouvia. Uma vez ameaçou um professor de Matemática, porque ele marcou-lhe uma falta disciplinar e exigiu que ela fosse ao conselho executivo depois de a ter apanhado a atirar papéis. "Levantei-me e disse-lhe que lhe partia os vidros do carro. Vinguei-me mais tarde, furei-lhe os pneus."
A escola tentou resolver a rebeldia de Ana com consultas no psicólogo escolar. Aos 14 anos, foi enviada para um curso profissional no Seixal e começou a ser medicada para estabilizar o humor. Mas os problemas continuaram. "Discuti com o meu namorado e para não lhe bater parti o vidro da porta da escola." A raiva levava-a a bater em quem mais gostava. Agrediu à estalada o namorado, pai do filho, por ciúmes, e chegou a atacar a mãe duas vezes. "Da primeira, ela não reagiu. Da segunda vez, deu-me um estalo e eu respondi-lhe com outro."
Em Abril entrou no centro de tratamento, contrariada. "Achava que não tinha qualquer problema. Para mim, a raiva era um estado normal" As primeiras semanas foram muito difíceis. "Tinha uns flashes: via-me a pegar em alguma coisa e a bater em alguém", conta. Mas agora já consegue dominar a raiva. Das duas vezes que foi a casa visitar a mãe e o filho, não foi violenta.