Em seis meses houve quase tantos viciados no jogo em tratamento como em todo o 2018

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03-07-2019
Villa Ramadas já tratou mais de 800 pessoas

Número de dependentes de apostas e videojogos sobe. Em 2018, o SNS tratou 118 pessoas. Neste ano, contam-se já 108, das quais 50 são novos casos. E 38 600 pediram para ser impedidos de jogar online.

“Queria estar em casa o dia todo a jogar. O meu pai passava-se. Não me dava dinheiro para comprar jogos, nem mos oferecia. Então comecei a tirar-lhe o cartão de crédito para ter dinheiro. Ele fazia-me ameaças e até chegou a partir a consola para eu deixar de jogar. A personagem do jogo tinha uma lâmina a sair do braço e eu cheguei a andar pela net à procura de um sistema parecido, comprei mesmo um. E queria aprender esgrima e a andar a cavalo. Era doentio."

Este é o autorretrato de José quando fala da sua vida até novembro do ano passado: a de um viciado nas apostas online e nos videojogos. José tem 18 anos, está a realizar um tratamento numa clínica privada desde o final de 2018 e é um exemplo do que cada vez mais se está a passar na sociedade - o tipo de dependência está a mudar com o gambling(apostas a dinheiro) e os videojogos a ganhar importância nas queixas que chegam às clínicas, quer do Serviço Nacional de Saúde (SNS) quer privadas.

Os dados do SNS mostram essa evolução - em 2018 receberam apoio 118 pessoas na rede pública e dessas 84 recorreram aos técnicos de saúde pela primeira vez. Já nos primeiros seis meses de 2019, os números do Sistema de Informação Multidisciplinar do SICAD apontam para um aumento desses pedidos. Segundo esta base de dados - integrada no Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependência -, naquele período recorreram ao SNS 108 pessoas e destas 50 eram novos casos. Ou seja, em meio ano, o SNS quase atingiu o número de utentes a receber apoio por adição ao jogo do ano passado. E mesmo as situações novas já são mais de metade das de 2018.

Panorama idêntico estará a acontecer nas clínicas privadas que se especializaram em tratar esta dependência - que também surge associada a outras adições como a droga e o álcool. Das entidades contactadas pelo DN, duas responderam confirmando a existência de uma maior procura.

"O primeiro caso que tivemos surgiu em 2004, mas temos notado um aumento nos últimos anos. O que temos verificado é que cada vez mais este quadro aparece em comorbilidade com outras dependências, nomeadamente adições químicas. Temos, por exemplo, pacientes que entram por consumo de cocaína e depois verificamos que têm associado o jogo patológico", conta ao DN Eduardo Silva, diretor da clínica Villa Ramadas, de Alcobaça.

Opinião idêntica tem Hugo Sousa, neuropsicólogo na clínica RAN, de Vila Real. "Temos tido cada vez mais pedidos de ajuda relativamente ao uso patológico com o jogo, seja de forma isolada ou cruzada com outras adições", frisa, especificando que entre esses pedidos há muitos relacionados com o "jogo online, as apostas desportivas ou outros jogos disponibilizados em sites".

38 mil pedem autoexclusão
As apostas em sites disponibilizados na internet - atualmente estão autorizadas a explorar este serviço em Portugal 11 empresas - têm vindo a transformar-se num problema de saúde pública e financeira para os jogadores e as famílias.

Os dados oficiais do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, referentes ao segundo trimestre do ano, mostram um aumento do número de jogadores que pedem às várias casas de apostas para serem impedidos de jogar. Este desejo de autoexclusão foi feito até ao final de junho por 38 600 pessoas, um universo que aumentou em 3200 entre o período de janeiro a março e de abril a junho.

É, todavia, uma pequena percentagem no universo de jogadores que nos três meses referidos fizeram pelo menos uma aposta: 297 mil em junho. Mesmo assim, segundo o SRIJ, houve 21 mil pessoas que nesse período, apesar de estarem registados, não fizeram qualquer aposta online.

Cenário que pode começar a mudar neste fim de semana, pois algumas das principais ligas europeias de futebol começam as épocas, com os jogos da Supertaça, como é o caso de Portugal, França, Alemanha e Inglaterra.

"Dívida impossível de pagar"
Tal como José, António (também nome fictício) perdeu o controlo da sua vida. Neste caso, não estamos a referir-nos a um jovem estudante, mas sim a uma pessoa com carreira profissional, como conta o próprio.

"A adição ao jogo [gambling] surgiu na minha vida já numa fase em que tinha uma vida estável, com família formada e bem inserido na sociedade. No ramo financeiro, onde trabalhava, lidava diariamente com a matéria-prima necessária para alimentar a minha adição, que descobri quando estava inserido no desporto de alta competição. No seio da equipa era uma prática vulgar e na moda: apostas desportivas", adianta.

Ainda em tratamento, António conta que a "vida exemplar" que tinha foi prejudicada por ter ficado "obcecado em prol das apostas. Depois de numa fase inicial em que ganhei, fez-me [as apostas] perder todos os meus recursos, fazendo que cometesse insanidades. Fez-me quebrar barreiras do permitido e, trabalhando eu na área financeira com acesso fácil a fundos elevados, levou-me à loucura de os utilizar e pôr em jogo". E o resultado foi "estrondoso! Uma dívida astronómica e impossível de pagar numa vida."

Tratamento em grupo
José não tem uma dívida para pagar, até porque garante não saber quanto gastou ao longo dos anos em que mentia aos pais - quando saíam para o trabalho -, dizendo-lhes que ia estudar, quando não saía de casa para poder ficar em frente ao computador. "Fisicamente fiquei muito magro, o meu lado cognitivo ficou descompensado. Já a parte financeira não me preocupava, eram os meus pais que pagavam, eu roubava-os", recorda.

Estes jogadores compulsivos - que nas estatísticas farão parte do grupo entre os 15 e os 34 anos onde existe maior dependência do jogo e da internet, segundo os dados do SICAD reunidos no Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral Portugal 2016-17 e no inquérito feito aos jovens que participaram no Dia da Defesa Nacional em 2017 - estão a cumprir terapêuticas em moldes idênticos.

Na clínica em Vila Real onde José continua integrado mesmo após ter terminado o tratamento de quatro meses - "decidi ficar cá para tirar um curso e fortalecer a minha recuperação, também consumia droga" -, aposta-se na terapia de grupo e numa componente individual com vários especialistas. Hugo Sousa (RAN) destaca a importância do apoio familiar. "É um aliado eficaz, sendo ajudada a desenvolver atitudes assertivas no relacionamento presente e futuro do utente. Este acompanhamento passa por participar ativamente nos dias de terapias específicas, para famílias, quer nas palestras quer nos grupos de sentimentos."

António, por seu turno, cumpre um tratamento na Villa Ramadas, em Alcobaça, onde também é acompanhado por especialistas e onde existe uma aposta em terapia de grupo, como explicou ao DN Eduardo Silva, o diretor da clínica.

Em ambos os casos, os utentes contam as suas experiências ao grupo, como José explicou ao DN: "Quando cheguei aqui [a Vila Real] chorava imenso quando falava sobre situações do meu jogo. Tinha muita culpa. Muita raiva. Foi difícil para o meu lado sentimental."

Retrato das apostas
Os portugueses apostaram nos primeiros seis meses do ano 243,4 milhões de euros nas apostas desportivas online. O valor é superior aos 191, 1 milhões do período homólogo. O maior volume de dinheiro investido nas casas alojadas na net é, todavia, nos jogos de fortuna e azar.

Futebol domina
As estatísticas publicadas pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos mostram que o futebol é a principal modalidade em que os jogadores registados nas 11 empresas licenciadas apostam. De acordo com os dados divulgados nesta quinta-feira, 71,4% das apostas são para essa modalidade, com a Liga portuguesa a ser a preferida, seguindo-se os campeonatos espanhol, inglês, italiano e a Liga dos Campeões.

Jogos de fortuna e azar
Menos referidos, mas com maior interessenpor parte dos apostadores, os jogos de fortuna e azar obtiveram um valor de investimento de 1308 milhões de euros nos primeiros seis meses de 2019, valor que compara com os cerca de 900 milhões do período homólogo.

Quem são os apostadores?
A esmagadora maioria dos jogadores registados nas casas de apostas têm entre 18 e 44 anos (86,5%), sendo que é entre os 25 e os 34 anos que está o maior número de pessoas (38,4%).

O que dizem os jovens?
O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências divulgou recentemente os resultados do inquérito feito aos jovens de 18 anos que participaram no Dia da Defesa Nacional em 2017. Com a análise desses dados percebe-se que 31% dos inquiridos disseram que têm contacto com a internet desde os 10 anos, enquanto 60% assumiram que esse contacto começou entre os 10 e os 14 anos, e uma percentagem idêntica respondeu que começaram a usar a net entre os 15 e os 18 anos. Além disso, 23% dos jovens disseram ter ou já ter tido problemas que associam à utilização da internet.

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