Villa Ramadas. O destino final para quem não larga o telemóvel

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04-11-2017
Jornal i

Rafael até podia acordar cedo, mas desde o momento do despertar até àquele em que efetivamente se levantava da cama, passavam pelo menos três horas. “Tinha que ver tudo o que se tinha posto nas redes sociais durante a noite”, conta ao i. Nunca deixou de fazer a sua higiene – “ainda que mínima” – nem de comer. Por isso, levantava-se já tarde para tomar o pequeno-almoço e era novamente ao telemóvel que fazia tempo até a hora de almoço.

Com 25 anos, tinha perfil no Facebook, Instagram, Twitter e Snapchat. Quando se aborrecia de explorar os perfis de quem conhecia e também de quem nunca tinha visto, virava-se para os jogos. “Nunca online, tinham que ter princípio, meio e fim”, esclarece.

Quando deixou de sair à noite com os amigos e de ir às aulas do curso de assessoria que estava a tirar em horário pós-laboral, passava o resto do dia em casa, de onde saia apenas para ir ao supermercado comprar “porcarias”, palavras do próprio. Começou a engordar, a vestir apenas o básico para não andar sempre de pijama, a falar cada vez menos com a mãe – uma das poucas pessoas com quem convivia e apenas por viverem na mesma casa – e passou a dedicar-se a uma vida totalmente virtual. “Perguntou-me pelo meu dia a dia, mas ele não existia”, admite.

Percebeu cedo que tinha um problema e nunca se recusou a procurar ajuda. O problema é que há dez anos, quando considera que a internet passou a ser um vício, o tema ainda não era tratado como tal. “Passei por tudo o que era médicos e especialidades e todos me diziam que não tinha nada. Era muito frustrante”, lembra. O cenário só mudou quando finalmente encontrou uma médica especialista em comportamentos aditivos que classificou aquilo que Rafael sentia com a palavra vício.

Passou por outros internamentos com os quais não se identificou, até entrar no Villa Ramadas, uma clínica em Alcobaça conhecida pelo tratamento diferenciador na área das dependências.

Um centro diferente Há cinco meses que Rafael trocou a sua casa no Porto por este centro de recuperação que, em vez de segmentar as dependências, opta por juntá-las num só espaço, com terapias comuns. “Só assim faz sentido”, comenta Judite Fortuna, socióloga no Villa Ramadas, quase desde a sua abertura, em 2002.

Ao adotarem o modelo terapêutico Change & Grow, o foco está virado para o desenvolvimento pessoal do indivíduo que, independentemente da adição que tenha, apresenta características semelhantes. São elas o perfecionismo, o egocentrismo, uma maior sensibilidade à frustração, baixa auto estima, comportamentos obsessivos e compulsivos.

“Estes traços são comuns a todas as dependências, seja de droga, álcool, jogo ou até internet”, lembra Judite. E é por isso que nesta casa com capacidade para 22 utentes, as histórias se conjugam. “Percebemos que faz mais sentido ter pessoas com diferentes problemas a partilhá-los, do que ter, por exemplo, apenas viciados em álcool que acabarão por falar apenas sobre esse tema”, refere.

A prova de que as adições têm mais semelhanças do que diferenças está no facto dos primeiros pedidos de ajuda de pessoas viciadas em internet ter chegado quase desde o início da clínica. Aliás, Judite não o esquece até hoje o caso de uma rapariga de 28 anos que quando chegou ao Villa Ramadas estava num estado tal de vício em jogos online, que já só respondia pelo nome do seu avatar.

Vícios geracionais São casos como estes, tão extremos e que acabam em internamento em hospitais psiquiátricos, que a equipa do Villa Ramadas quer evitar. Mas para isso há que estar cada vez mais atento aos sinais, que se camuflam numa sociedade cada vez mais tecnológica. “Se inicialmente os viciados em internet chegavam aqui mais por causa dos jogos online, agora são as redes sociais a causa da dependência”, explica Judite, que adianta ainda que tanto se pode notar na necessidade constante de ver o que os outros estão a fazer, como na dependência da aceitação do outro ao que é publicado. “Quando punha uma fotografia, ficava sempre ansioso se tinha muitos likes. Era logo motivo para ficar em baixo e começar a duvidar de mim”, admite Rafael.

O problema, explica Judite, é que os jogos e as redes sociais deixaram de exigir um computador. “Agora, com os telemóveis, não há lugar para este vício”, admite.

Rotinas essenciais No pulso, Rafael exibe uma série de pulseiras coloridas, todas elas com um significado. Cada uma representa um dos cinco princípios fundamentais da terapia: a verdade, a aceitação, a gratidão, o amor e a responsabilidade. “Falta-me só essa última”, explica Rafael. Sabe que só a recebe quando estiver quase a sair, o que já não deve tardar. Até já teve direito a duas visitas a casa, durante as quais não tocou sequer num telemóvel nem cedeu à tentação de ligar o computador. “Quero fazer tudo direitinho, para um dia voltar a olhar para tudo isso como uma pessoa normal”, admite, não descartando a hipótese de voltar a ter um telemóvel e até redes sociais. “Vamos indo e vamos vendo”.

Para já, sabe que tem que cumprir o dia a dia rigoroso do Villa Ramadas que passa por acordar às 7h30, fazer a cama, tomar o pequeno-almoço às 8 horas, passar a amanhã entre grupos terapêuticos, almoçar às 12h30, voltar à terapia até ás 17, jantar às 19h e recolher às 21h30.

Rafael tem noção que os dias passados naquela casa com piscina e vista para a montanha funcionam como uma espécie de bolha, mas é uma bolha que fez com que passasse dos pensamentos suicidas à aceitação. “É uma viagem alucinante, acreditem”.

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