Tratamento de drogas, estou de saída...

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Anónimo

São duas da manhã. Estou cansado de olhar para as paredes do quarto, de dar voltas na cama, de fechar os olhos e tentar pensar em coisas positivas. Acho que já tentei de tudo. E não durmo.

O passado tem-me vindo com muita frequência à cabeça. Parece-me distante, na sua essência. Grande parte das atitudes que tinha já não me dizem nada. Tenho bem presente que não quero voltar ao desequilíbrio emocional e intelectual com que aqui entrei. Isso eu não quero! Cada vez que vejo um recém-chegado entrar, por mais diferente de mim que possa parecer, tem sempre qualquer coisa com que me identifico. E não quero mesmo voltar àquele estado. Ter atingido e reforçado esta conclusão acaba por ser a origem de todos os medos que sinto nesta altura, quando todos os outros dormem, aqui no centro. Não quero mais aquele estilo de vida, pelo menos as consequências, mas, no fundo, também não sei muito bem o que mais tenho nesta altura. Falam-me em responsabilidade e sinto medo. Sinto-me incapaz de assumir como certas, tarefas tão fáceis como ir todos os dias para um trabalho, pagar as minhas contas, enfrentar as pessoas e o mundo sem a protecção da minha droga de escolha. Digam o que disserem, mas no momento em que usava não tinha medo de nada… e agora, tudo a frio, não sei se vou ser capaz. Não sei até que ponto vou conseguir ser feliz.

Lembro-me do meu pensamento de há poucos meses. Passava por dizer a mim mesmo “se não conseguir estar deste lado posso sempre voltar para aquilo que já conheço”. Agora já não funciona. Acho que tenho mais medo de voltar a usar do que do resto. Nem pareço eu a pensar isto.

Quase todos os dias tenho pensamentos que envolvem doença: luxúria, momentos em que usei que me vêm à cabeça, pensamentos destrutivos em relação a mim e aos outros, de raiva, de ressentimento, de inveja. Também sinto muita inveja. Dos que dizem que já não têm vontades de uso, dos que vão sair de tratamento e têm mais facilidades materiais do que eu à sua espera: há os que já têm um grande trabalho, os que têm mulher à espera, os que, por terem feito um tratamento, recebem prémios da família: carros, casa, viagens… nem sequer vão ter que trabalhar. Não vão ter dificuldades.

Não posso optar por essa via. A mim, o dinheiro faz-me mal. Passar o dia sem uma ocupação também: tenho a experiência dos breaks, em que ao fim de poucos dias estava a sentir-me mal por pensar que não tinha nada para fazer. Nada que fosse saudável, pelo menos. Aborrecido. Sentia-me aborrecido. E às vezes é isso que a minha vida em recuperação parece, quando projecto: um enorme aborrecimento. Porque não é sugerido envolver-me sexualmente, porque a luxúria, a manipulação e a desonestidade não são esperadas em recuperação… Nada do que fiz até entrar nesta casa parece estar de acordo com  a recuperação.

Por outro lado, há um número imenso de coisas que me atraem neste lado. Tenho amigos à minha espera lá fora. Pessoas que fizeram parte do meu tratamento e que, lá fora, já lutam pela sua vida. Já vivem este programa. Vejo-os nos aftercares, de certa maneira até invejo alguns deles, porque parecem ter mais força do que eu, porque conseguem manter as coisas mais simples, porque vêm cá pedir ajuda e dizer que por vezes se sentem mal, mas no fundo trazem um brilho nos olhos que eu só consigo manter cá dentro.

Também consigo ter momentos do dia em que a cabeça está parada, em que me apetece estar em silêncio ou a ouvir música que me faz sentido. Acho que é um bocado a minha noção de espiritualidade. Antes eu não sabia o que era isto.

Obrigado mas eu já estou de saída…

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